Parte I
Esse tal amor nos prega peças ao longo da vida. Um dia ele aparece puro e inocente e fica no portão de casa, com medo do flagrante pelo pai ou pela mãe. Aos poucos ele amadurece e nunca sabemos se o assunto tratado é o mesmo, nem sempre reconhecemos o que é o amor. Nos enganamos, nos enganam e em todo este período ele aparece em diversos aspectos.
De acordo com os dados do Registro Civil fornecido pelo IBGE, 17.349 pessoas se casaram em Curitiba em 2007, durante o mesmo período 1.987 divórcios foram concedidos e entre tantas pessoas poderia estar dona Angelique, mas não se divorciou, muito menos casou.
Aos 50 anos dona Angelique lembrava que já teve três namorados, um marido, quatro filhos e sete netos durante sua vida e segura de si esperava o dia em que a morte a pegaria pelas mãos e a levaria para sempre, em direção ao desconhecido.
Atualmente 50 anos é pouca coisa, mas dona Angelique se desgastou muito durante a vida. Ao encontrá-la qualquer pessoa daria 65 anos sem temer, pensando em fazer logo um elogio, pois aquela senhora certamente teria mais que isso.
Dona Angelique se tornou uma feia senhora, daquelas que crianças tremem ao encontrar pela rua. No ônibus os bebês choram ao perceber seu olhar seco e árduo.
Com as mãos mais enrugadas que o rosto, dona Angelique segurava a sua bengala e passeava pelo parque São Lourenço naquela manhã. Foi quando o viu correr. Seu coração disparou, segurou firme na bengala, respirou fundo e ajeitou o cabelo, com a esperança de melhorar alguma coisa.
Parte II
O desejo não tem idade, não tem cor, não tem gosto, não tem cheiro. Engana-se quem pensa que os velhinhos são todos como dona Angelique, que vive à espera do dia em que a morte bater em sua porta.
Naquela manhã dona Angelique entendeu o que é atração.
É com a atração que tudo começa. Essa palavra tão pequena provoca o primeiro beijo, a carona para casa, o convite para um jantar. É com a atração que o amor acontece, que o sexo acontece, que o compromisso acontece, talvez isso justifique o faturamento de R$21 bilhões da indústria de cosméticos em 2008, conforme a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) . As pessoas procuram ficar bem para as outras, procuram se sentir belos.
Dona Angelique não tinha mais jeito, não havia cirurgia que melhorasse aquele rosto horrível. Mas naquela manhã ela não pensou muito nisso. Apenas admirou o monumento humano que ao correr parecia que dançava levemente sobre as nuvens.
Ela desejou. Nunca havia sentido isso, nem com seu falecido marido. O desejo corria por suas veias, passava por todos os seus órgão e por dois minutos se sentiu no céu, como se estivesse correndo com seu anjo sobre as nuvens.
O tempo começou a fechar e com a queda da primeira gota de chuva voltou à realidade, foi para casa e antes mesmo de sair do parque já pensava em antecipar a caminhada no dia seguinte.
Parte III
De acordo com o senso demográfico do IBGE, 23.953 mulheres com idade entre 60 e 64 anos residiam em Curitiba em 2000. Dona Angelique tem 50 anos, mas aparentemente faz parte desse grupo.
Na tarde que seguiu aquela manhã de flertes e desejo, dona Angelique sonhou acordada. Acostumada a cochilar às 15h respirou fundo antes de fechar os olhos e quando soltou o ar disse, com o tom de voz baixo, quase inaudível:
- O amor é confortável.
Depois de 50 anos foi entender o quanto é gostoso sentir o arrepio que passa por toda a coluna e inexplicavelmente vai parar no couro cabeludo, onde pousa por alguns segundos e de repente desaparece, deixando apenas o rosto rosado e uma agradável palpitação no coração. O sentimento, em qualquer que seja o seu formato, nos engana e ao decorrer de toda a vida é isso que manifesta a confusão do que realmente se sente.
O amor é confortável, mas não é para todos. É necessário que haja um certo grau de sensibilidade e humanismo, sem esses e alguns outros sentimentos não é possível sentir, não é possível permitir que se sinta, nem que sintam por nós.
É uma entrega, muitas vezes ingrata. Que pode acontecer a qualquer momento, como com dona Angelique.
Naquela tarde teve o sono mais agradável da sua vida.
Parte IV
Curitiba, 06 de março de 2007. Máxima prevista: 28ºC Mínima:20ºC
Sensação: 45ºC (na sombra)
Com esse calor Dona Angelique caminha no parque apenas pela manhã, antes das 9h e faz uma semana que não o encontra.
Ela estava um pouco cansada e sentou-se no banco, olhou para o lado direito e resmungou como todas as senhoras chatas fazem. Virou para o esquerdo e se assustou, lá estava ele, sentado ao seu lado e ela não sabia o que fazer, seu coração começou a bater mais forte, colocou um sorrisinho sem graça no rosto e fez de conta que não se importou com aquela aproximação tão desejada. De repente ele virou para ela e disse, como um bom curitibano:
- Que calor que faz nessa cidade!
Ela não sabia o que responder, mesmo o comentário simples. Será que falaria da sua pressão? A dúvida a torturava, mas conseguiu:
- Verdade, parece que cada ano piora.
Dona Angelique se saiu bem, e começaram a conversar. Ficaram pouco tempo, pois o sol estava cada vez mais forte e não tinha nenhuma nuvem no céu. O nome dele é Valentin, ao contrário de Dona Angelique ele parece ser mais novo.
Ouvir a voz dele foi mais que estar no céu.
Parte V
Durante a juventude dona Angelique não se preocupou em cultivar amizades. Em um determinado momento de sua vida achou que aquilo era uma grande falha, mas já era tarde. Não havia lista de telefones, não visitava amigos para tomar chá, café ou, quem sabe, uma boa cerveja.
Ela não era popular e mesmo que fosse sua personalidade não manifestava amizades. Não ter ninguém pode parece atraente em alguns dias, mas viver na profunda solidão aos 50 anos, sem ter alguém com idéias próximas o suficiente que renda dias e noites de tagarelice, parece tortura. Dona Angelique, além de uma senhora muito feia é muito chata, mas esta disposta a mudar isso para se aproximar de Valentin.
Hoje pela manhã, enquanto estava no parque o encontrou. Se cumprimentaram e ele continuou a correr. Mas logo voltou.
Quando o amor aparece precisa ser confortável, para que isso aconteça é necessário ser correspondido. Naquela manhã dona Angelique entendeu perfeitamente.
Parte VI - Final
Pi... Pí... Pi...
-Porque não se calam?! Porque não desligam essa porcaria que não para de apitar na minha cabeça?!
É 21 de junho de 2007, exatamente início de inverno. Valentin não conseguia falar e se irritava com um apito que parecia estar muito próximo de seu ouvido. Começou a pensar em dona Angelique. Não parava de pensar em dona Angelique.
Valentin não conseguia movimentar os pés. Queria sair correndo, mas além de imóvel estava tudo escuro, ele não conseguia gritar, não conseguia chamar por alguém para tirá-lo dali.
Exausto pelas tentativas mal sucedidas de se movimentar de qualquer maneira, caiu no mais profundo sono e sonhou.
Era início do inverno e Valentin corria no Parque São Lourenço. Ele a encontrou.
Dona Angelique segurava firme a sua bengala, estava mais corajosa que nunca. Sem falar uma palavra aproximou-se de Valentin, suspirou e com os olhos cheios de lágrimas deu-lhe um beijo na testa.
A calmaria chegou no seu coração e logo voltou a ouvir aquele apito irritante. Pi... Pi... Pi... E disse, em seu último suspiro:
- O amor é confortável.
Valentin passou os últimos cinco anos em coma, num hospital de Curitiba. Nunca conheceu dona Angelique, ela nunca existiu, mas o período desses cinco anos foi mais real e intenso do que já viveu longe daquele hospital.