quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Se

Se eu morrer, que seja de alegria.
Que eu me afogue na melhor gargalhada de minha vida.
E que a gargalhada mortífera seja treinada diariamente.

Se eu sofrer, que seja de cãibra.
Que meu divertimento seja bom o suficiente para deixar suas marcas.
E que cada momento seja eternizado em um músculo que contorna os meus lábios.

E se eu não rir, prefiro não morrer de tristeza nem sofrer de solidão.




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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Tempo II

Eu tenho uma amiga que não vive nesse mundo. Raramente consigo falar com ela: não atende o celular, não responde os e-mails, não tem Orkut, Facebook e afins. Ela mora em uma cidade vizinha da minha, então nem encontrá-la no mercado é possível, mas ela é minha amiga.

Apesar desse isolamento dos canais de comunicação, quando consigo algum contato, seja por sinal de fumaça, código morse, telegrama ou um telefonema atendido lá pela 20ª tentativa, marcamos nossos encontros e eles sempre rendem boas conversas e deliciosas risadas.

Nunca fui à sua casa e ela nunca foi à minha, mas nem por isso ela deixa de ser a minha amiga. Se eu ficar mais de uma semana sem tentar contato, logo recebo um SMS, com sua reclamação sobre a falta de atenção e uma declaração de sua saudade.

Isso faz eu lembrar dos tempos de escola. Eu morava a 100 metros da escola onde estudei por sete anos e lá tive um grupo de amigas. Um ótimo grupo de amigas.

Eram de lá as amigas que brincavam de “casinha”, Barbie ou que estiveram presentes nos primeiros tombos de roller. Foi com as mesmas amigas que deixei parte desses brinquedos de lado passamos para as bicicletas e para o vôlei, o nosso preferido por anos.

Sempre estudei de manhã e nos dias mais quentes, quando éramos dispensadas mais cedo, saíamos da escola e ficávamos sentadas na grama que tinha na frente da minha casa, jogando papo fora, contando os “causos” da nossa vida, jogando com a "brincadeira do copo" (aquela que você teoricamente evoca os espíritos e eles respondem algumas perguntas). Nesses encontros, eu, muito receptiva, corria para dentro de casa e fazia um suco (de pacotinho mesmo) e elas adoravam. Não tenho certeza, mas o apelido de “suco” deve ter aparecido aí:
- Suco, faz um suco para nós – e todas caíam na risada.

Depois do almoço nos encontrávamos na frente da minha casa ou em qualquer rua do grande Bairro Alto e passávamos a tarde inteira jogando vôlei, isso quando não saíamos de bicicleta em uma grande aventura.

Naquele tempo não tínhamos e-mail, as redes sociais não existiam, computador era coisa de rico e celular era coisa de cinema, mas sempre nos encontrávamos e nem por isso elas deixaram de serem minhas amigas.




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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Perfume

Será que não podemos falar sobre como foi o nosso dia, sobre os nossos planos, o quão interessante foi assistir a última estreia ou sobre qualquer bobeira do trânsito caótico das 18h?

A verdade é que esse seu silêncio me sufoca e me emudece. Seu anonimato me mata pouco a pouco através do ardor em meu peito e eu nem lembro mais da sua voz, do seu cheiro, das suas preferências. Essas coisas se dissipam como um perfume lançado ao ar: marcante e envolvente, mas frágil. Um vento fraco é capaz de encorajar a fuga do odor e mesmo que seja o melhor, muito dele será esquecido. E o que fica?

Fica que ele é o melhor, oras. Bastará aspergir um pouco da essência que a memória volta e ele será, mais uma vez, o melhor.
Nossa amizade é como o perfume. Lembra de quando falei sobre a aspersão?




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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Perguntas

Queria que não existisse despedidas definitivas. Assim manteria viva a da esperança do reencontro. Mas até que ponto essa ilusão é válida? Questionou ela ao ver aquele álbum surrado pelo tempo.

E se não fossem as fotos, lembrar-me-ia de todos com tanta veracidade? E se ninguém tiver fotos minhas? Alguém nesse mundo sentirá saudades de mim? E a saudade tem validade?

As dúvidas não cessaram, mas problema maior foi a saudade que as respostas deixaram às perguntas.




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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Tempo

Era terça-feira, ele tinha 80 anos, as mãos já estavam bem enrugadas e dominadas pelas manchas. Coisas da idade.

Entrou na sala, abriu o caderno e tentou achar uma posição confortável para o lápis em sua mão. Estava ansioso pela primeira aula, afinal esperara 80 anos por aquele momento. Linhas mais largas e outras bem estreitas. Abrira seu primeiro caderno de caligrafia.

A primeira lição não poderia ser outra: a primeira letra do alfabeto, gordinha e impecavelmente redonda, um grande desafio àquelas mãos trêmulas. Era destro, mas a esquerda auxiliava o trabalho segurando o caderno com tanta intensidade que parecia que alguém logo ia roubá-lo.

A procura pelo “a” perfeito durou uma tarde, mas nas próximas aulas já demonstrava maior facilidade na “dança das mãos”, como ele chamava carinhosamente o movimento de escrever. Apesar da demora para adquirir o nível mínimo de habilidade e conhecimento que precisava, o tempo foi justo e aprendeu o necessário para surpreender Maria, sua esposa.

Na manhã do seu aniversário de casamento falou à Maria que tinha uma surpresa, mas para isso a esperaria sob árvore da praça central, às 15h. A árvore marcava o primeiro encontro e a primeira vez que ele pegou em suas mãos. Foi sob a mesma árvore que passaram as longas tardes de domingo, quando levavam os filhos ainda pequenos para tomar sol.

Maria chegou pontualmente às 15h e lá estava ele, com as mãos sujas. Ele saiu de frente da árvore. Lá deixou três letras dentro de um coração: P e M.

E foi sob a mesma árvore que as lágrimas escorreram pelo rosto de Maria de uma forma jamais vista por Paulo.



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sexta-feira, 18 de junho de 2010

Poesia

Porque a vida não é uma poesia?
Se fosse, o céu seria sim de algodão
E os carros não existiriam.
Apenas bicicletas e barquinhos

Porque a vida não é uma poesia?
Se fosse, o ódio seria até charmoso
E o negro não seria necessariamente sombrio
E o branco não significaria necessariamente a paz

Porque, diabos, a vida não é uma poesia?
Se fosse, sexo seria apenas sob a luz da lua
E nadar nu seria prudente em qualquer tarde ensolarada
E sempre teria um belo lago depois da vírgula

Porque a vida não é uma poesia?
Se fosse, morrer ganharia leveza
E seria glorioso ter uma morte poética

Porque a vida não é uma poesia?



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quinta-feira, 17 de junho de 2010

Correr

Ela saiu correndo. Dizem que a lavoura de trigo é uma das mais bonitas e foi exatamente ali que ela parou. Seus olhos encheram-se de lágrimas, nem ela sabia de onde vinha aquela água, e continuou correndo. Era esse o objetivo. Correr.

Ela se divertia. Ria e corria. Como se fosse a única e a melhor coisa a se fazer na vida.

Ela cresceu e ainda corre. Mas nunca mais foi tão divertido correr. Ela corre pra pegar o metrô. Pra fugir do mal tempo. Pra não se atrasar. E corre toda a segunda-feira, quando decide ir pra academia, pra emagrecer.



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quarta-feira, 16 de junho de 2010

Utopia

As empresas resolveram trabalhar meio-período naquela semana. Estavam todos mobilizados. Cada um sabia na ponta da língua a vida, o histórico, o objetivo e a linha de todos eles.

Dessa vez não teria como errarmos. Sim, o Brasil vai ganhar só tem o que ganhar. Todos unidos, pensando no bem do nosso país, pensando como seria valorosa a conquista dessa vitória. Pelas ruas ouvia-se em uníssono: Vai Brasil! Chegou a nossa hora.

Era até emocionante de ver. Era inacreditável.

Época de eleição nunca foi assim. Então eu acordei com o barulho da maldita vuvuzela. Ainda é copa, o povo não tem tempo para pensar que estamos beirando a falência do nosso país. É ano de eleição e o temor toma conta de mim. Só de mim?


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terça-feira, 27 de abril de 2010

Ela

Ela escrevia. Ele lia. Já apaixonado, delirava com a frase bem construída, enlaçava a sua mente com a fantasia e por alguns segundos vivia apenas aquele momento. Era gratificante. Chegava a sonhar. Ficava excitado com os personagens, com as tramas.

Ele a achava doce e sensual. Ela, apenas escrevia. As palavras surgiam, se amontoavam e as belas histórias nasciam. E ele, cada vez mais apaixonado, queria apenas a continuação. Nada tinha mais importância no mundo do que lê-la por uma história.

No dia seguinte, na capa do jornal anunciava a sessão de autógrafos. Entusiasmado, correu os olhos para o caderno, ver se aparecia uma foto. Mas nada.

Ele não queria ficar no anonimato, pelo menos queria saber com quem deveria sonhar. Chegou à sessão de autógrafos. Ela, na verdade, era ele. E bem barbudo por sinal.




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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Chuva

Era apenas uma gotinha
que escorregava pela janela em ritmo de valsa,
perdida naquele cenário cinza e triste.

Era apenas uma gotinha
que antes de cair
espiou o casal de namorados.

Era apenas uma gotinha
à procura de uma janela interessante para visitar

Era apenas uma gotinha
num mundo inteiro para mergulhar.

Era apenas uma gotinha
que apaixonada pelo Rio de Janeiro resolveu fazer uma festa
uma gotinha popular, que convidou todo o mundo para participar.

Era apenas uma gotinha
que se sentiu culpada pelos danos causados aos fluminenses
e chorou, até não poder mais.




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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Apresentando - Hancornia

A brincadeira favorita era ir ao mundo dos gentianos. Diversão garantida nos dias de chuva.

Eles deitavam na cama e bastava rolar apenas uma vez para a esquerda que o chão se transformava em um lindo céu, que além do azul, exibia nuvens nas cores do arco íris. Coisa linda de se ver.

Ele usava uma bermuda azul marinho, no mesmo tecido dos uniformes escolares, e uma regata listrada. Ela usava branco e cinza.

A afinidade dela era com o gentiano que tinha apenas um olho, localizado no meio da testa, já o dele, exibia um belo par de orelhas pontudas. Fora o tamanho daquele povo, a semelhança com os humanos era grande, a particularidade daqueles seres é que cada um tinha um dos sentidos mais aguçados. O olho no meio da testa, que pareceria uma deficiência para nós, era motivo de orgulho para aquele povo, era o que os destacava.

Lá não chovia e, apesar de não se saber exatamente onde ficava o mundo dos gentianos, eles acreditavam que quando caía água na terra, o sol chegava no outro mundo. Neste dia eles apenas passearam.




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sexta-feira, 26 de março de 2010

Sons

Tum, tum, tum.
Ouviu Suzana, que cheia de medo foi abrir a porta de sua casa.

Era o coração de Maciel, que entoava uma música incrivelmente mais linda que “I don't want to miss a thing”.


Trimmmm.
Ouviu Suzana, que jogou o despertador contra a parede.

Era o sonho mais lindo, que acabava ao som irritante do despertador.




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quinta-feira, 25 de março de 2010

Empoeirado

Abandonado.
Rejeitado.
Reclamava o hibiscus depois de 5 meses que viu o último ponto final.




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