domingo, 22 de fevereiro de 2009

Viagem de trem

De acordo com as estimativas da OMS, a esquizofrenia atinge cerca de 24 milhões de pessoas no mundo todo.

Eu passeava feliz, estava em um trem com a minha família, quando a velocidade em que os vagões percorriam sobre os trilhos começou a me assustar. Aquele momento foi decisivo.

Todos começaram a saltar do trem, mas minha irmã ficou. Eu não poderia deixá-la naquele vagão. Foi quando a agarrei e tentaria saltar com ela. Foi um ato de coragem e eu conquistei a vitória.

Lembro que era loira e aquele acidente destruiu o bairro de uma bela cidade. Eu ainda não tinha filhos, mas logo os viria Caroline, Albert e Stéphanie, nesta ordem. Sou uma atriz, me chamo Grace Kelly, sou a favorita de Alfred Hitchcock. Só não entendo porque as pessoas duvidam da minha história, não acreditam em mim.

Quando cheguei aqui contava sobre a perseguição que sofria, certamente um dia essas pessoas irão me encontrar e certamente não haverá quem duvide de mim. Ouço gritos que me apavoram, pioram toda a noite, certamente após a enfermeira me envenenar. Quando estou bem ela vem com remédios e mais remédios e meu medo aparece. Não quero falar com mais ninguém.

O acidente aconteceu na década de 50 e hoje passa na minha memória como um filme antigo. Você acredita em mim?


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domingo, 8 de fevereiro de 2009

Café

Ele apareceu sisudo na cafeteria (uma das melhores do Mercado Municipal de Curitiba), pediu o de sempre. Poucos minutos depois seu expresso estava pronto e lia o jornal do dia.

A capa anunciava a visita do presidente da República, Lula, e sua esposa Marisa ao vice-presidente José de Alencar, que retirou alguns tumores do abdome em janeiro e se recuperava no Hospital Sírio-Libanês, que fica em São Paulo. Enquanto o presidente e seu vice riam felizes na capa, muitas pessoas ainda dormiam em suas casas, algumas estavam no mesmo café que aquele senhor, outras não estavam. No verão as pessoas enchem as praias todo o final de semana, uns tentavam curar o porre de sábado com a última coca da geladeira, alguns casais acordavam e outros estavam acordados há horas, pois o filho recém-nascido desperta exatamente às 5h, inclusive no domingo.

Enquanto tudo isso acontecia o presidente da República e o então recuperado vice-presidente riam na capa dos jornais de domingo. Tudo parecia estar bem. Só saberemos como as coisas realmente estão quando explodirem nas capas de segunda-feira, onde até os jornais deixam de ser leves e se tornam reais.



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terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

É confortável - Parte III

Esta é uma continuação de "É confortável - parte I e II"



De acordo com o senso demográfico do IBGE, 23.953 mulheres com idade entre 60 e 64 anos residiam em Curitiba em 2000. Dona Angelique tem 50 anos, mas aparentemente faz parte desse grupo.

Na tarde que seguiu aquela manhã de flertes e desejo, dona Angelique sonhou acordada. Acostumada a cochilar às 15h respirou fundo antes de fechar os olhos e quando soltou o ar disse, com o tom de voz baixo, quase inaudível:
- O amor é confortável.

Depois de 50 anos foi entender o quanto é gostoso sentir o arrepio que passa por toda a coluna e inexplicavelmente vai parar no couro cabeludo, onde pousa por alguns segundos e de repente desaparece, deixando apenas o rosto rosado e uma agradável palpitação no coração. O sentimento, em qualquer que seja o seu formato, nos engana e ao decorrer de toda a vida é isso que manifesta a confusão do que realmente se sente.

O amor é confortável, mas não é para todos. É necessário que haja um certo grau de sensibilidade e humanismo, sem esses e alguns outros sentimentos não é possível sentir, não é possível permitir que se sinta, nem que sintam por nós.

É uma entrega, muitas vezes ingrata. Que pode acontecer a qualquer momento, como com dona Angelique.

Naquela tarde teve o sono mais agradável da sua vida.

* Continua.